segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

"Joyce, qual é a cor da sua calcinha?", uma entrevista com um operador de telemarketing

Por André Cintra
Dizem que a internet é a desgraça das entrevistas. Porque hoje em dia se faz tudo por e-mail, e o contato olho a olho se esvai como se não tivesse importância. Tudo bem. Concordo. Mas há momentos em que, apesar de tudo, a internet ajuda no trabalho jornalístico. Como nesta entrevista com Joacy, um operador de telemarketing.

Joacy Braz tem 26 anos, é pernambucano de Jaboatão dos Guararapes, e eu jamais chegaria até ele se não fosse pelo Orkut. Aliás, só chegaria se as músicas que ele canta fizessem sucesso, ou se lesse a publicação de suas mais de 800 poesias. Mas ele não tem músicas próprias gravadas, e não há, ainda, editoras interessadas em publicar as poesias. Ele trabalha como auxiliar administrativo de manhã e à tarde, mas é das seis da tarde à meia noite que exerce sua profissão preferida: operador de telemarketing de uma fábrica de blocos para pranchas de surf.

Ganhando cerca de R$5,40 por hora, Joacy entra todos os dias na central de atendimentos muito sorridente, com a roupa que quiser, pronto para atender cerca de 70 chamadas – que podem durar, no máximo, 180 segundos, como num Twitter vocal – num ambiente cujo ar-condicionado nem sempre vence o calor. Ele só atende, é um operador passivo. Por ter a voz um pouco fina, não é raro que o confundam. O sujeito que está do outro lado do país às vezes escuta Joyce ao invés de Joacy, percebe a voz um pouco aguda, e não tem dúvida: “E aí, Joyce?”. Não bastasse o engano, vem em seguida o descaramento: “Qual é a cor da sua calcinha?”. Mas Joacy não se importa. Pelo contrário, responde sem acanhamento: “Eu não uso calcinha.”

El Cabriton y Amigos: Como que é, Joacy? O cliente tem sempre razão?

Joacy Braz: (Joacy ri, sem responder a pergunta)

ECYA: Tem ou não tem?

Joacy: Isso só posso dizer depois que eu analisar o caso. Até que eu analise nem ela está certo, nem eu estou errado.

ECYA: Desde quando você trabalha no call center?

Joacy: Eu trabalho em call center desde julho de 2007. Mas nesse aqui desde maio de 2008.

ECYA: Qual dos seus trabalhos você prefere: o de auxiliar administrativo ou o de operador de telemarketing?

Joacy: Eu prefiro o de operador porque é mais dinâmico. Tem a interação com o cliente... Você dificilmente atende a mesma pessoa. Sem contar a variedade de costumes, jeitos, tipos que se atende e que se convive. Porque se existe um ambiente democrático mais incrível de se conviver, é o call center. Sempre me falam lá no call center que minha alegria de estar lá é inegável, porque estou sempre sorrindo!

ECYA: Não existe um ambiente mais democrático do que um call center?

Joacy: Creio que não. Porque não conheço outro lugar onde você junta evangélicos, católicos, ateus, gays, héteros, bis, homens, mulheres, rockeiros, românticos, punks, tudo numa panela só. Fora desse ambiente, eles estão sempre em seus clãs. Variedade de gente maior do que num call center, com tanta crença, cultura e diferenças, eu jamais vi. E isso me fascina, porque todos convivem bem.

ECYA: Como você lida com seus colegas?

Joacy: Eu lido muito bem com todo mundo porque sou livre. Não sou do tipo que se prende a preconceitos. A vida não dá mais tempo para essas coisas. A gente se diverte. Eu, pelo menos, me divirto muito e interajo muito com todos. Entre um cliente e outro, esclarecendo minhas dúvidas, tirando dúvidas de outros, dando suporte a novatos, conversando com o supervisor. A gente se fala o tempo todo.

ECYA: E qual é a sua relação com seus supervisores? Eles chamam muito a sua atenção? São severos?

Joacy: São profissionais. Mas até hoje, com quase dois anos de empresa, nunca tive problemas com nenhum dos que trabalhei. Pelo contrário. Tenho carinho e respeito por todos. De quem trabalha certo, o supervisor não vai pegar no pé. É só fazer o que se deve.

ECYA: E o que é que se deve fazer?

Joacy: Seguir os procedimentos de atendimento, atender ao cliente com praticidade, estar sempre se reciclando, lendo as atualizações do sistema. Ou seja, você tem que entender que, embora seja divertido na maioria das vezes, é trabalho. Então é focar em cima disso, e tudo dá certo na maioria das vezes.

ECYA: Você trabalha com telemarketing desde quando?

Joacy: Desde maio de 2008.

ECYA: Antes disso, você trabalhou com o quê?

Joacy: Eu penei bastante em busca de emprego fixo. Entre 1999 e 2008 fui vendedor de cosméticos e lingeries via catálogo. Fiz um trabalho de divulgação sem fins lucrativos de uma cantora de MPB entre 2002 e 2005. Entre 2003 e 2009 me tornei poeta e escrevi 8 livros de poesia. Em 2007 entrei no telemarketing.

ECYA: Opa! Poesia? Como é isso?

Joacy: Pois é. Sou poeta e cantor, também. Canto desde meus cinco anos, e a poesia surgiu depois de uma depressão. Foram três anos de depressão entre 2000 e 2003. Aí comecei a escrever para ocupar a mente e a coisa cresceu.

ECYA: O que motivou a sua depressão?

Joacy: A separação dos meus pais, principalmente. Porque afetou demais a minha vida, e minha mãe sofreu muito. Ela ficou tão abalada, que tive medo de perdê-la. Eu estava sem trabalho, sem perspectiva de vida aos 18 anos. Mas foi o amor dela por mim que me reergueu, e Deus colocou o prazer do canto e da poesia para completar. E eu fui ressurgindo das cinzas. Daí meu apelido: Ikki.

ECYA: Ikki?

Joacy: É! Ikki é o cavaleiro Fênix, dos Cavaleiros do Zodíaco!

ECYA: Posso colocar sua mp3 no blog?

Joacy: Sim. Se a Elba me processar, a culpa é sua!

ECYA: Está bem! Você já conseguiu conciliar o telemarketing com seu dom artístico?

Joacy: Não me atrevi a tanto! Mas cantava para algumas supervisoras nas pausas. Elas adoravam!

ECYA: Já que você canta, dá para caprichar na voz na hora de falar com os clientes?

Joacy: Depende do cliente, do humor. A voz varia e oscila muito. Normalmente eu sou naturalmente mulher ao telefone. Isso é hilário.

ECYA: Como assim?

Joacy: Mesmo após a puberdade a voz não ficou muito grave. Então tenho esse desvio sexual via telefone! Em 99% das ligações sou tratada como mulher. A maioria fala “a moça do atendimento”, ou “Joyce, a atendente”.

ECYA: Você se importa com isso?

Joacy: Pelo contrário! Morro de rir. Já levei cantadas, xingamentos, coisas absurdas do tipo: “Joyce, qual é a cor da sua calcinha?”

ECYA: E o que você respondeu?

Joacy: Eu disse que não usava calcinha.

(Silêncio)

Joacy: Mas não disse que não era mulher. Porque com a voz que tenho... Bem, deixa eles pensarem assim. É fetiche deles, mesmo!

ECYA: Na sua vida pessoal, você sente atração por homens ou por mulheres?

Joacy: Uma vez, depois de receber cinco elogios como Joyce, minha supervisora me perguntou por que eu não dizia que era homem.

ECYA: E você disse o quê?

Joacy: Eu disse que eles achavam que eu era mulher porque a voz de fato é feminina. Não valia a pena perder tempo dizendo o contrário. Afinal, ali é um personagem criado pelo próprio cliente. Sempre brinco que sou uma pessoa assexuada no atendimento. Eu entro no prédio como Joacy, mas no atendimento é Joyce, Jéssica, Josy, ou o que o cliente atender. Mas eu fico tranquilo. Se elogiam, sei que fui bem. Se xingam, digo que foi a Joyce.

ECYA: Vem cá. Tem horas em que você se sente chato ou desagradável?

Joacy: Quando eu estou cansado, sim. Na sexta-feira, às vezes. Ou depois de pegar um cliente que me esculhamba. Ou quando tenho muita bronca na empresa de manhã. Enfim, sou humano.

ECYA: Você sente que tem vocação para ser operador de telemarketing?

Joacy: Não sei se existe vocação para isso. Existe, creio eu, perfil.

ECYA: E você tem o perfil, certo?

Joacy: Creio que sim. Porque estou durando quase dois anos como tal. Talvez não teria trabalhado cara a cara porque é complicado você encarar alguém lhe esculhambando e engolir seco. Por telefone é menos dolorido!

ECYA: Como você se sente quando é você que recebe uma ligação de telemarketing fora do horário de trabalho?

Joacy: Ah... Eu fujo! Quando é no celular, eu atendo. Mas em casa, não. Quando atendo e já sei o que é, digo que sou a Joyce, a irmã do Joacy, e digo a ele (eu) não está! Mesmo quando eu não trabalhava, nunca tive muito saco para os que ligam. E eu particularmente evito ligar também.

ECYA: Você já ficou nervoso com algum cliente?

Joacy: Com vários. Já tive vontade de matar alguns. Mas alguns já quiseram me matar, me prender, me estuprar...

ECYA: Como é uma tentativa de estupro por telefone?

Joacy: Foi o senhor pauzudo que tentou. Ele já era conhecido no atendimento. Ele me disse que tinha um celular de 22 centímetros para consultar. Imagina? 22 centímetros é um estupro presumido!

ECYA: Agora a última pergunta, que deveria ser a primeira: você fala no gerúndio?

Joacy: Normalmente sim, até porque quando o cliente entra em contato, não é para reclamar de mim, e sim da operadora e do sistema dela. Quando eles dizem que vocês isso, vocês aquilo, ou você mesmo, diretamente, eu digo, senhor, não sou eu, é o sistema!

ECYA: Então a culpa é da operadora. Você não tem culpa de nada, né?

Joacy: Na maioria das vezes, não. Mas às vezes acontecem erros porque um atendente não passou corretamente a informação. Por preguiça ou falta de conhecimento, mesmo. Às vezes o cliente liga dez vezes pelo mesmo motivo. E o pior é quando você vai dizer a verdade a ele depois que nove disseram o contrário. Aí é triste para mim que vou ouvir aqueles elogios básicos. Mas já acostumei.

(Silêncio)

Joacy: Ah, sobre uma pergunta sobre o que me atrai, sou livre e isso basta.

Se quiser, ouça a música "Ciranda da Rosa Vermelha", de Elba Ramalho, cantada por Joacy:



Ou então, leia uma poesia escrita por ele:

Vivendo a vida (Joacy)


Meu caminho é um rio
Que corre sozinho
Minha vida é uma trilha
Que segue sem guia
Vou vivendo a caminhar
E a cantar canções
Eu sou livre como o ar
Que nas manhãs se faz

Sou como um bicho feroz
Sou solto e veloz
Quando é preciso eu grito
E encaro o perigo
O que quero eu consigo
Eu luto por isso
Nada mais me intimida
Eu enfrento a vida

Eu não temo a solidão
Porque sou emoção
Busco o que acredito
Ser o que eu preciso
Eu escrevo o meu destino
É assim que vivo
Tento fazer o melhor
Pra não me sentir só.

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